Como já mencionei no post sobre a principal importância da
Lei 12.764/12, temos que comemorar (e muito) sua sanção, mas, por outro lado,
não há como não comentar (e até
lamentar) sobre os vetos da Lei que tinham sua importância e deveriam ter sido
mantidos quando de sua sanção.
Dedicarei este post a dois dos dispositivos vetados, que
referem-se ao direito à educação e, por esta razão, os analisarei
conjuntamente.
Constam como fundamentos do veto desses dispositivos, conforme
publicação no Diário Oficial da União, que “ao reconhecer a possibilidade de
exclusão de estudantes com transtorno do espectro autista da rede regular de
ensino, os dispositivos contrariam a Convenção Internacional sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência, internalizada no direito brasileiro com status de
emenda constitucional. Ademais, as propostas não se coadunam com as diretrizes
que orientam as ações do poder público em busca de um sistema educacional
inclusivo, com atendimento educacional especializado nas formas complementar e
suplementar.”
Bom, para verificar se há a contrariedade como afirmada
precisamos conhecer o texto de ambos os dispositivos e depois fazer uma análise
com base na Constituição e na Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência.
A Convenção, como vimos, ingressou no nosso ordenamento
jurídico como norma constitucional, já que aprovada conforme procedimento
previsto na Constituição Federal.
E do que trata o inciso IV do artigo 2 da Lei 12.764/12 que
foi vetado?
O inciso IV do artigo
2 trazia como uma das diretrizes da Política Nacional de Proteção dos Direitos
das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) ”a inclusão dos estudantes com transtorno do
espectro autista nas classes comuns de ensino regular e a garantia de
atendimento educacional especializado gratuito a esses educandos, quando
apresentarem necessidades especiais e sempre que, em função de condições
específicas, não for possível a sua inserção nas classes comuns de ensino regular,
observado o disposto no Capítulo V (Da Educação Especial) do Título V da Lei n
9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional)“
A leitura do dispositivo legal, sob meu ponto de vista, leva
a uma primeira conclusão, que como REGRA os estudantes com TEA seriam incluídos
em salas regulares.
O dispositivo, porém,
previa uma EXCEÇÃO, considerando as necessidades especiais e condições
específicas do aluno com TEA, que era a garantia de atendimento educacional
especializado quando não fosse possível a inserção em classes comuns de ensino
regular.
Entendo que este dispositivo não contraria a Constituição
Federal, pois a própria Constituição prevê no inciso III do artigo 208, “a
garantia ao atendimento educacional especializado aos portadores de
deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino“.
Quando a Constituição fala em preferencialmente não quer
dizer obrigatoriamente e, de acordo com meu entendimento, prevê como REGRA a
inclusão na rede regular e como EXCEÇÃO o atendimento educacional
especializado, que pode ser na rede regular ou em escolas especiais.
A dúvida, entretanto, é se este artigo da Constituição
Federal teria sido revogado tacitamente quando da aprovação da Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência com status de
emenda constitucional e, com isso, teríamos no Brasil a adoção da inclusão em
escolas regulares sem qualquer exceção.
Bom, a leitura que faço da Convenção é que não ocorreu esta
revogação tácita do inciso III do artigo 208 da Constituição Federal, vigorando
ainda da forma como promulgado, bem como, ainda em vigor, todas as normas dele
decorrentes, no caso a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Estatuto da
Criança e Adolescente, ou seja, a regra é a inclusão na rede regular e a
exceção é o atendimento educacional especializado que pode ser na rede regular
ou em escolas especiais.
Sei que há vozes em sentido contrário, mas é esta a leitura
que faço deste dispositivo, já que como dizemos a lei (e aqui incluo a
Constituição) não contém palavras inúteis. E por que assim interpreto?
Explico.
O artigo 24 da Convenção Internacional prevê como REGRA para
os Estados Partes a inclusão quando afirma que “os Estados Partes assegurarão
sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao
longo de toda a vida, com os seguintes objetivos: a) O pleno desenvolvimento do
potencial humano e do senso de dignidade e auto-estima, além do fortalecimento
do respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela
diversidade humana; b) O máximo desenvolvimento possível da personalidade e dos
talentos e da criatividade das pessoas com deficiência, assim como de suas
habilidades físicas e intelectuais; c) A participação efetiva das pessoas com
deficiência em uma sociedade livre.”
Ainda de acordo com a Convenção “para a realização desse
direito, os Estados Partes assegurarão que: a) As pessoas com deficiência não
sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que
as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e
compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência; b) As pessoas
com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e
gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais
pessoas na comunidade em que vivem; c) Adaptações razoáveis de acordo com as
necessidades individuais sejam providenciadas; d) As pessoas com deficiência
recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas
a facilitar sua efetiva educação; e) Medidas de apoio individualizadas e
efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico
e social, de acordo com a meta de inclusão plena.”
A inclusão, portanto, é a REGRA e deve ser buscada para um
dia se chegar a inclusão total, mas isto não significa que não podemos ter
exceções quando a pessoa com deficiência, em razão de suas necessidades
especiais e condições específicas, necessitar de atendimento educacional
especializado.
Aliás, obrigar todos os estudantes com TEA estudarem na rede
regular que não possui um currículo adaptado, que não possui um acompanhante
especializado (seja para realizar mediação nos ambientes escolares e
acompanhá-lo nas atividades da vida diária), que não tem professores
capacitados é violar seus direitos, em especial o próprio direito à educação,
colocando inclusive a sua integridade física e vida em risco.
E não falo isso para dramatizar a situação, falo pela
experiência de quem acompanha mais de 300 pessoas com TEA, cujos familiares
trazem histórias de exclusão dentro da escola inclusiva da rede regular que
causaram danos documentados a integridade física de estudantes.
Não sou contra a inclusão, esta é uma meta que deve ser
perseguida pelo Estado Brasileiro sempre.
Mas tentar fechar as portas das escolas especiais quando não
se tem escolas verdadeiramente inclusivas é praticar uma exclusão, deixando
centenas de pessoas com TEA sem a possibilidade de estudar e aprender.
Ressalte-se ainda que efetivar o direito à igualdade não é
tratar os iguais de forma igual, mas tratar os desiguais no limite de suas
desigualdades. Este é conceito da igualdade material. Assim, não consigo
imaginar que uma escola da rede regular sem adaptação para atender todos os
graus de autismo possa efetivar a igualdade e garantir a inclusão do estudante
com TEA. Quem sabe um dia, quando as escolas da rede regular estejam adaptadas
e garantam a inclusão de todos, esta META da inclusão plena se torne real.
Sobre o parágrafo 2. do artigo 7. da Lei 12.764/12 também
vetado remeto a leitura ao post que escrevi sobre o tema e acrescento, que como
esclarecido acima, o referido dispositivo considerava a situação daqueles que
por necessidades especiais e condições específicas não conseguiriam frequentar
a escola pública regular.
Tal dispositivo criava uma exceção para não se penalizar o
gestor público quando não fosse possível a inclusão na rede pública regular em
razão das necessidades especiais e condições específicas do aluno com TEA.
Portanto, entendo que o inciso IV do artigo 2 e o parágrafo
2 do artigo 7, ambos da Lei 12.764/12, não violam a Constituição e a Convenção,
ao contrário, estão em perfeita consonância com as referidas normas e não
deveriam ter sido vetados com este fundamento.
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